“Então, corre o dia para o homem virtuoso. E quando a noite chega cuido bem para não chamar o sono! Ele, o senhor das virtudes, não gosta de ser chamado! Mas, lembro-me do que fiz e pensei durante o dia. Ruminando, pergunto a mim mesmo, paciente como uma vaca: quais foram as tuas dez superações?”
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Aqui diretamente do meu décimo segundo dia de quarentena, um desafio de escrita me parece uma ótima maneira de registrar as percepções do isolamento social. O desafio do dia pede que eu escreva um conto baseado no na página 42 do livro que eu estiver lendo. Enquanto boa contestadora, só abro o livro por ele estar à distância de um antebraço de mim, e quando leio esse trecho tenho certeza que preciso escrever sobre.
O sono sempre foi para mim um espelho. Nos últimos dias, imersa pelo excesso de informação, meu cérebro não consegue mais escavar os entulhos a fim de encontrar o doce convite para uma noite longe da minha lucidez e do empirismo. E eu chamo, e tomo chás de todas as espécies, e levanto para dois copos d’água, e jogo sobre ele filmes de qualidade duvidosa, e mais informação e mais aspirações e mais incertezas. É tudo que temos, por hora. E o relógio que outrora foi tão importante, pois mostrava que dentro de algumas horas seria a hora do banho para ir ao trabalho, agora já é irrelevante. Não há compromisso com o relógio. Há compromisso comigo mesma, e esse, sou expert em postergar.
Um dia me disseram para anotar os sonhos. Disseram também que todas as noites nós sonhamos, mesmo que pela manhã pensemos que não. Disseram também que cada sonho é um pedaço de desejo do subconsciente, que cada sonho é uma fusão dos meus pensamentos ao longo dos dias, semanas, meses. Vez ou outra dizem também que os sonhos revelam nossas insanidades que são reprimidas no contexto social. Não é legal mostrar ao mundo que eu gostaria de voar atirando mísseis sobre a terra e ressuscitar dinossauros e comandar uma alcateia de lobos. Esse tema não cabe em sociedade, mas em sonho eu posso experimentar. Só em sonho se pode matar ou morrer. Ou na arte. Poucos foram os sonhos que eu anotei.
No livro, um mestre conversa com Zaratustra sobre o fenômeno raro do sono. Ele diz que para dormir bem é preciso estar desperto durante todo o dia. Diz também que o sono não é domesticável, como um cãozinho que obedece ao ser chamado. O sono é recompensa. E faz muito sentido quando me lembro das noites em que o tive tão perto que queria agradecer em voz alta ao acordar. Obrigada sono, obrigada cama, obrigada deliciosa degustação do não-existir, obrigada ao submundo, obrigada à insanidade, obrigada. Dormimos, eu, meu corpo, minha mente, minha alma, todas as sub camadas que formam esse amontoado de órgãos. Obrigada à tudo que eu não sei o que é.
O mestre conta à Zaratustra que antes de dormir ele se faz quatro perguntas. “Quais foram as tuas dez superações? Quais foram as tuas dez reconciliações? As dez verdades e os dez risos com que meu coração ficou feliz?”; E com essas quarenta projeções mentais, sem que fosse convocado, o sono, senhor das virtudes, toma conta dele de uma só vez. Automaticamente eu penso na minúcia que essas perguntas possuem. E a importância de se perguntar diariamente cada uma delas. É preciso estar desperto para reconciliar, superar, crer e sorrir. Estar completamente envolto na experiência terrestre. Estar completamente presente e com os pés no chão, sentindo, ouvindo, produzindo e aperfeiçoando o modo de vida, constantemente. O sono é privilégio dos que acordam.
Essa noite eu não dormi. Girava na cama sentindo revolta por não conseguir embarcar no trenzinho que levaria embora toda a carga do dia passado. No meio dos dias que estamos vivendo coletivamente, mas separados, embora tenhamos tanto tempo para as coisas que em outros momentos não nos cabiam, esse tempo é gasto em aflição e incertezas. É desgastante ser testemunha ocular da história. A mente ocupa-se em garantir a sobrevivência enquanto escuta a televisão discorrer sobre o aumento no número de mortos, mesmo que não hajam rostos para os mortos em nossas memórias. Reduzidos a números e a casos, vemos que nossa humanidade importa tão pouco para o sistema que estamos inseridos. É difícil extrair o suprassumo positivo da catástrofe. Ao fim do dia, agradecer ou relembrar as felicidades parece não condizer com a realidade. Não nos sentimos no direito de elencar sinapses positivas.
“Dez vezes por dia deves te superar: isso causa um bom cansaço e é a papoula para a alma. Dez vezes deves reconciliar-te contigo mesmo: para superar a amargura, o irreconciliado dorme mal. Dez verdades deves encontrar durante o dia, caso contrário deverás buscá-las durante a noite, com a alma ainda faminta. Dez vezes deves alegrar-te durante o dia, caso contrário o teu estômago, pai da aflição, irá perturbar-te durante a noite”.
Por hora, me lembro do básico. A importância de ter um teto. O privilégio de ter conforto sob o teto. A beleza de não precisar contar os minutos para fazer as refeições. Poder preparar os alimentos de acordo com a nossa vontade. Abrir as janelas e ver o céu azul e os pássaros que voltaram a voar no meu campo de visão. A possibilidade de estar a sós comigo. A possibilidade de oferecer um espaço de diálogo entre meu eu e meus desejos. Uma espécie de auto análise. Muitas vezes desconfortável por trazer à tona características que não me dei conta do momento em que as adquiri. E fazer o caminho pelo rio que há em mim, utilizando um barquinho de papel, a remo, com calma, sem pressa. Nesse momento me lembro que só temos o hoje. Os planos que fizemos há um mês, já não vale, não cabe, não é compatível. É tempo de revisão.
Deitada no divã vermelho que existe em meu peito, a inquietação vai embora. Ao eliminar as antigas certezas, só sobra o que eu puder fazer com o que tenho. “Você fez o melhor que podia com o que tinha naquele momento”. Repito comigo. Hoje, ao deitar, que eu me lembre de ter sorrido por motivos banais. Que eu me lembre de ter encontrado uma caixa que não abria a tempos, que eu me lembre de ter encontrado a textura perfeita para o meu suco favorito. Que eu me lembre que voltei a desenhar. Que eu me lembre que superei minha meta de quantidade de água a ser bebida. Que eu me lembre de ter me perdoado por erros que só agora vieram à tona. Que eu me lembre que aqueles que eu amo estão seguros. E que eu estou fazendo exatamente o que posso, com aquilo que tenho.
“Paz com Deus e com o próximo é o que quer o bom sono. E paz também com o diabo do teu próximo. Caso contrário, ele virá assombrar-te à noite. (…) Não desejo muitas honrarias, nem grandes tesouros: eles excitam a bílis. Mas é ruim dormir sem um nome honrado e um pequeno tesouro”, disse o mestre. “Em verdade, se a vida não tivesse um sentido, e eu tivesse que escolher um absurdo, este seria o absurdo escolhido”, assim falou Zaratustra.
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